terça-feira, 28 de setembro de 2021

As mães escravizadas e os bebês brancos

Augusto Gomes Leal com sua ama de leite Mônica, em fotografia de João Ferreira Villela, de 1860 — Foto: Acervo Fundação Joaquim Nabuco/Min. da Educação *********************************************************************************** ‘A fotografia feita no Recife por volta de 1860. Na época era preciso esperar no mínimo um minuto e meio para se fazer uma foto. Assim, preferia-se fotografar as crianças de manhã cedo, quando elas estavam meio sonolentas, menos agitadas. O menino veio com a sua mucama, enfeitada com a roupa chique, o colar e o broche emprestado pelos pais dele. Do outro lado, além do fotógrafo Villela, podiam estar a mãe, o pai e outros parentes do menino. Talvez por sugestão do fotógrafo, talvez porque tivesse ficado cansado na expectativa da foto, o menino inclinou-se e apoiou-se na ama. Segurou-a com as duas mãozinhas. Conhecia bem o cheiro dela, sua pele, seu calor. Fora no vulto da ama, ao lado do berço ou colado a ele nas horas diurnas e noturnas da amamentação, que os seus olhos de bebê haviam se fixado e começado a enxergar o mundo. Por isso ele invadiu o espaço dela: ela era coisa sua, por amor e por direito de propriedade. O olhar do menino voa no devaneio da inocência e das coisas postas em seu devido lugar. Ela, ao contrário, não se moveu. Presa à imagem que os senhores queriam fixar, aos gestos codificados de seu estatuto. Sua mão direita, ao lado do menino, está fechada no centro da foto, na altura do ventre, de onde nascera outra criança, da idade daquela. Manteve o corpo ereto, e do lado esquerdo, onde não se fazia sentir o peso do menino, seu colo, seu pescoço, seu braço escaparam da roupa que não era dela, impuseram à composição da foto a presença incontida de seu corpo, de sua nudez, de seu ser sozinho, da sua liberdade. O mistério dessa foto feita há 130 anos chega até nós. A imagem de uma união paradoxal mas admitida. Uma união fundada no amor presente e na violência pregressa. A violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço afetivo que está sendo invadido pelo filho do senhor. Quase todo o Brasil cabe nessa foto‘. *********************************************************************************** AS MÃES ESRAVIZADAS E OS BEBÊS brancos*********************************************************************************** A abolição da escravatura em 13 de maio de 1888 foi o último capítulo da morte lenta do regime escravista no Brasil. Antes da Lei Áurea, um conjunto de leis abolicionistas já vinha sendo instituído no país, a conta-gotas. Houve a proibição do tráfico negreiro em 1850, que acabou com os desembarques nos portos brasileiros de africanos sequestrados, e, em 1871, a Lei do Ventre Livre, que considerava libertos todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos após sua data de promulgação. Essa implosão lenta do regime escravista brasileiro teve efeitos colaterais perversos para as mulheres escravizadas. Um deles se abateu sobre o "mercado" de amas de leite que há décadas dava lucro aos "senhores" em cidades como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Mães escravizadas eram tradicionalmente alugadas para amamentar os filhos de mulheres brancas de classe média e alta, que raramente davam de mamar aos próprios bebês. Por quê? A resposta está no discurso médico da época, que dizia que "a mulher branca é frágil, é linfática, é inconstante, é nervosa, tem o leite 'fraco'", explica Telles. "E se dizia exatamente o oposto complementar para a mulher negra: elas são fortes, robustas, conseguem amamentar mais de uma criança ao mesmo tempo, têm muito leite, seus filhos não precisam de tantos cuidados assim." Esse "mercado" acabou se tornando extremamente lucrativo depois da proibição do tráfico. Com a redução do número de escravizadas urbanas, o valor pago pelas amas de leite entrou em trajetória crescente. "E aí entra um traço muito cruel: as classes médias e as elites preferem pagar o dobro ou o triplo do preço da mulher escrava sem o seu bebê", relata Telles. Assim, muitas mães eram separadas — temporária ou permanentemente — dos recém-nascidos para que os bebês brancos não disputassem atenção com seus filhos. Antes da Lei do Ventre Livre, os "senhores" tinham um incentivo econômico para manter os recém-nascidos vivos, já que eles nasciam escravos e, nesse sentido, representavam-lhes ganhos potenciais no futuro. "Depois de 71, quando as crianças não vão ser mais escravizadas, elas começam a ser largadas na rua, nas praias, na Roda dos Expostos." A historiadora conta que muitas parteiras — no caso do Rio de Janeiro, muitas de origem francesa — se especializaram no que acabou virando um filão dos estertores do mercado escravista: elas faziam os partos das mulheres escravizadas em suas próprias casas, chamadas de "casas de maternidade", e já se encarregavam de sumir com os bebês e alugar as mulheres. O número de crianças na Roda dos Expostos, também conhecida como roda dos enjeitados — ligadas às igrejas e instituições de caridade, que recebiam recém-nascidos abandonados — cresceu substancialmente nessa época.

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