quarta-feira, 30 de novembro de 2022

' O pequeno príncipe preto' traz menino negro ao protagonismo da narrativa Obra literária infantil, de Rodrigo França, coloca a criança negra no papel de protagonista do clássico

    


 
O pequeno príncipe preto' traz menino negro ao protagonismo da narrativa

Obra literária infantil, de Rodrigo França, coloca a criança negra no papel de protagonista do clássico

Adriana Izel
  •  
    Um dos livros mais lidos e conhecidos do mundo, o clássico O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, foi o ponto de partida para a obra O pequeno príncipe preto, que ganhou uma versão literária em 2020 pela Editora Nova Fronteira após dois anos em cartaz nos palcos de teatro e ter sido assistido por 60 mil pessoas. Escrito pelo ator, diretor, dramaturgo, artista plástico e articulador cultural Rodrigo França, o livro nasceu da necessidade de colocar uma criança negra no papel de protagonista. ;É difícil encontrar personagens na literatura infantil de meninos e meninas negros. É uma provocação, porque não há príncipes e princesas negros;, conta em entrevista ao Correio.
    O pequeno príncipe preto tem três pontos em comum com a obra de Saint-Exupéry. A começar pelo fato de que o menino negro vive em um planeta apenas com uma árvore. Há, ainda, a relação com uma raposa e a ressignificação de valores. Também é possível encontrar passagens que fazem referência ao clássico, principalmente, quando fala de ;cativar o outro;. ;Tem três pontos que se encaixam. Mas foi uma provocação. É o segundo livro mais vendido do mundo, então associar a nomenclatura preto junto (ao título) atiça uma reflexão, um questionamento;, defende o autor.
    Apesar das similaridades, a história gira em torno do menino negro que espalha as sementes da Baobá, que ele batiza de Ubuntu, por outros planetas, com o objetivo de mantê-la viva por meio da ancestralidade e de desenvolver uma relação de coletividade e união. ;Mas a gente coloca a Baobá num outro patamar. No clássico, ela é uma erva daninha, que o menino deve matar para que não destrua o planeta dele. Aqui, a gente coloca a forma que a árvore merece, porque em diversas culturas da África, a Baobá é uma árvore sagrada, milenar. Então, dentro do livro, ela passa toda essa sabedoria milenar para o menino, sobre a relação das suas transições, da sua cultura, do autoamor e do autocuidado, e principalmente, sobre ancestralidade;, explica apontando a principal mudança.

    Trazer uma narrativa dos palcos para as páginas de um livro foi um desafio. ;No teatro a gente codifica tudo num cenário, com uma boa trilha sonora, o que não temos na literatura. Temos que conduzir o leitor a tudo. A minha maior preocupação foi preservar aquilo que já afetava quem tinha acesso ao espetáculo e transcrever todas essas sensações. Tive que ser bastante detalhista em relação ao ambiente e as sensações, até mesmo ao cheiro que o menino encontra em determinados lugares. Foi uma preocupação básica para que o leitor consiga mergulhar na atmosfera desse personagem;, completa França.

    Para isso, o autor contou com o apoio da ilustradora Juliana Barbosa Pereira, com quem ele havia trabalhado na versão teatral. As animações produzidas pela artista para os palcos, agora, se tornaram um complemento no livro. A ideia de incluir Juliana no projeto também tem outro viés: o de dar protagonismo a uma mulher negra, dentro de um projeto escrito por um homem e protagonizado por um menino. ;Como o próprio livro tem uma quebra de hegemonia: é um homem negro que escreve, é um homem negro como protagonista. Eu quis quebrar mais ainda essa hegemonia masculina e trouxe uma mulher negra;, revela.

    Militância na arte


    Rodrigo França tem uma extensa carreira no teatro, principalmente no Rio de Janeiro, mas a projeção nacional aconteceu no ano passado, quando ele participou da 19; edição do Big Brother Brasil. Não levou o prêmio, mas colocou no horário nobre debates que só conseguia levar para os palcos e para a sala de aula ; ele também é professor. ;É óbvio que o dinheiro seria muito bem-vindo, mas esse não foi o meu objetivo, até porque eu sei do racismo estrutural. Eu sabia que seria muito difícil um homem negro ganhar, por isso estou torcendo para o Babu e para Thelma (no BBB20), porque a gente sabe sobre o tipo de olhar que esses corpos têm. Não entrei com a expectativa de vencer, mas de publicitar todo o trabalho que desenvolvo há 29 anos. Foram expostas 12 pautas importantes para o Brasil: racismo estrutural, mercado de trabalho, diferença salarial entre homens e mulheres, mercado para a pessoa trans, blackface, lugar de fala, tantas outras coisas. Sai de lá vitorioso, sem a menor dúvida. Minha sala de aula não teria tanto peso em quantidade;, avalia.
    O artista tem usado essa projeção conquistada no programa para dar ainda mais passos no cenário cultural e na disseminação da pauta negra. Ele está em cartaz com as peças Oboró: Masculinidades negras e Yabá: Mulheres negras, que discutem a relação desses corpos na cultura iorubá e o racismo estrutural no Brasil. O primeiro estava previsto na programação do Festival de Curitiba, que acabou sendo adiado por conta da pandemia de coronavírus. Só no ano passado, empregou 123 profissionais diretamente em projetos teatrais, todos feitos sem patrocínio, com investimento próprio de França. ;Eu não romantizo o perrengue, a guerrilha. Eu acho que isso é uma violência. Talvez eu esteja no ranking dos produtores que mais produzem teatro no Brasil sem patrocínio. Isso é racismo estrutural, mas não qualifica o meu trabalho;, define.

    França ainda se dedica a novos trabalhos. Depois do primeiro livro, ele também estará no audiovisual. ;Quando entrei num programa como aquele (o BBB) era para furar bolhas. Por mais que o meu teatro esteja lotado, não consigo atingir todo mundo. A literatura atinge, por isso a necessidade de escrever. Mas o audiovisual chega a lugares que o teatro também não chega. Por isso estou me dedicando a roteiros de cinema e série, quero me dedicar a carreira de diretor de cinema a partir do ano que vem;, diz e anuncia ter um projeto, ainda em segredo, com um canal de televisão por assinatura.

    O pequeno príncipe preto
    De Rodrigo França, com ilustração de Juliana Barbosa Pereira. Editora Nova Fronteira, 32 páginas. Preço médio: R$ 39,90.

    "O Pequeno Príncipe Preto" por seu autor Rodrigo França

    Em um minúsculo planeta, vive o Pequeno Príncipe Preto. Além dele, existe apenas uma árvore Baobá, sua única companheira.

    Quando chegam as ventanias, o menino viaja por diferentes planetas, espalhando o amor e a empatia. O texto é originalmente uma peça infantil que já rodou o país inteiro.

    Agora, Rodrigo França traz essa delicada história no formato de conto, presenteando o jovem leitor com uma narrativa que fala da importância de valorizarmos quem somos e de onde viemos - além de nos mostrar a força de termos laços de carinho e afeto. Afinal, como diz o Pequeno Príncipe Preto, juntos e juntas todos ganhamos.



    O PEQUENO PRÍNCIPE PRETO PARA PEQUENOS

    terça-feira, 29 de novembro de 2022

    Dudu de Oliveira e as mensagens de Reis pela igualdade

     

    Dudu de Oliveira e as mensagens de Reis pela igualdade

    Publicado em Minissérie

    Ator Dudu de Oliveira vive o arcanjo Miguel em Reis e comemora poder passar uma mensagem de otimismo ao “mundo adoecido”

    A participação de Dudu de Oliveira como o anjo Mikhail (arcanjo Miguel) em Reis está repleta de mensagens. E não é só porque o personagem é um mensageiro. O fato de um ator negro estar escalado para o papel tem muito o que dizer.

    “Ter um homem preto ocupando esse espaço dentro da televisão é de extrema importância, pois, em nenhuma obra até hoje, um homem negro tinha vivido esse tipo de personagem. Estou ocupando esse espaço porque os roteiristas, mesmo não sendo pretas ou pretos, pensaram em nós se apropriando de lugares que já estão no imaginário das pessoas”, diz uma agradecido Dudu. O ator completa dizendo que, se fosse um anjo mensageiro, gostaria de carregar ao mundo a mensagem de que “é para as pessoas ficarem em paz, pois uma energia de amor vai contagiar o planeta e voltaremos a ter sonhos genuínos.”

    “O mundo está adoecido e caminhando para um lugar de energia fascista que não aproxima as pessoas, mas sim, as afasta. Venho acompanhando os últimos acontecimentos de artistas que sofreram retaliações por se posicionarem. É triste, porém, nunca sofri esses ataques e espero não os receber, pois a energia que emano para o planeta é de muito amor – e quero receber isso de volta. Quero um mundo leve para dançar, cantar, abraçar e voltar a sorrir”, comenta Dudu. Aos haters, o ator jura que não dá atenção e os trata com reiki e mandando desejos de felicidade.

    Dudu viverá um super-herói no filme Abestalhados 2, projeto no qual entrou às pressas porque o ator que faria o papel não pôde assumir as filmagens após a pandemia. “Sempre foi um sonho fazer personagens como esse que está no nosso imaginário infantil. Eu amo assistir a filmes de super-heróis até hoje e tenho o meu preferido, que é o Pantera Negra”, afirma o ator.

    Assim como ReisAbestalhados 2 traz um ator negro em um local no qual o audiovisual não costuma encaixá-lo. “Estou me sentindo muito realizado por estar vivendo dois personagens que realizam uma quebra de paradigma no audiovisual brasileiro. Que esses personagens façam uma jornada linda e possam chegar na casa das pessoas de maneira amorosa e inspiradora”, deseja Dudu.

    segunda-feira, 28 de novembro de 2022

     Segurança Pública de Lula mira arsenal pesado de caçadores atiradores e colecionadores de armas e a cassação das licenças de clubes de tiro

    Governo de transição prioriza revogação de medidas de Bolsonaro para conter fluxo de armas para grupos criminosos


    Clube de tiro (Foto: Reuters/Pilar Olivares)
     

    Alex Mirkhan, Brasil de Fato - O governo de transição planeja conter o fluxo de armas de fogo e munições de civis para grupos criminosos e milícias privadas. Coordenador da equipe de justiça e segurança pública, o senador eleito Flávio Dino (PSB-MA) tem falado em revogar decretos de Bolsonaro para iniciar um plano de desarmamento da população.

    Nesta quarta-feira, dia 23, o político maranhense voltou a atacar os decretos e portarias editados pelo governo de Jair Bolsonaro, que que fizeram o número de armas nas mãos dos civis quase triplicar, segundo levantamento do Instituto Sou da Paz.

    “Existe uma decisão do presidente Lula de mudar a legislação que foi mutilada nesse período bolsonarista no sentido de voltarmos ao controle responsável sobre armas. O que temos em debate é como vai ser a regulamentação dos CACs [caçadores, atiradores e colecionadores] em relação aos arsenais que foram adquiridos nesse período em que reinou o vale-tudo. Daqui pra frente não há dúvidas de que as portarias, as normativas que foram editadas inclusive contrariando a lei serão revistas”, adiantou Dino em entrevista concedida à imprensa no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em Brasília.

    Apesar de ainda reunir propostas e estratégias, o governo Lula não deve promover mudanças drásticas de imediato para a maior parte das pessoas que já possuem armas. O foco será cortar excessos nas liberações dadas aos CACs, aumentar a fiscalização sobre clubes de tiro e recolher armas de grosso calibre.

    Sob Bolsonaro, cada CAC pôde adquirir até 15 fuzis e 6 mil munições por ano, ampliando os arsenais de civis tanto em quantidade quanto em calibre.  Ao mesmo tempo, os clubes de tiro se proliferam pelo Brasil e mostraram sua influência política e financeira, sendo um dos principais financiadores de protestos pró-armas realizados nos últimos quatro anos. 

    “A gente estima que tenha entrado ali, no mínimo, 1,2 milhão de armas só na mão de civis, dezenas de milhares de fuzis, muitos dos quais que já se sabe hoje estão sendo comprados por laranjas e desviados para o crime organizado, para milícias”, aponta Bruno Langeani, gerente de projetos do Sou da Paz.

    Ele também refuta ilações feitas por grupos armamentistas que têm difundido desinformação sobre a abrangência dos planos do governo Lula para o tema. Inclusive, um dos desafios previstos pelo próximo governo passa por campanhas de comunicação e conscientização, tentando evitar o pânico e a resistência às proposições. 

    “Ninguém está defendendo a proibição da compra de arma, o fim do tiro esportivo, não tem nada a ver com isso. Agora, esses excessos absurdos que foram criados, permitindo um único CPF ter 60 armas, comprar 180 mil munições, são coisas incompatíveis com o estado de direito e com a garantia de promoção de segurança pública prevista na Constituição Federal”, afirma.

    Mudanças exigirão nova postura das forças de segurança

    Com o apoio da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, pretende-se verificar a frequência de integrantes de clubes de tiro, a comprovação de participação de atiradores esportivos em competições e outras medidas de controle sobre os arsenais já existentes.

    Há a expectativa de que as ações sejam respaldadas por outras políticas de segurança pública, mais afirmativas do que pautadas pela repressão e o encarceramento em massa. É o que agrega Bella Gonçalves (PSOL-MG), eleita deputada estadual por Minas Gerais e membro da equipe de Cidades do governo de transição.

    “Nós temos muitas armas nas mãos dos civis, talvez até mais do que nas mãos das forças policiais e isso é gravíssimo. Eu entendo que a gente vai ter que construir algumas medidas que foquem num modelo de segurança pública cidadã e consiga pensar em formas de estimular os civis a devolverem as armas, uma campanha de conscientização e a essa cultura de violência”, afirma a socióloga. 

    Porém, as metas traçadas pelo governo de transição esbarram nas atribuições dadas ao Exército e à sua própria competência para cumpri-las. Além de controlar as autorizações dadas aos CACs, o braço terrestre das Forças Armadas também é responsável pelo cadastramento de armas e artefatos. 

    De acordo com Langeani, membros do Exército foram lenientes com as alterações de normativas feitas pelo governo federal e devem ser responsabilizados pelo crescimento de ocorrências envolvendo arsenais provenientes de CACs. Ele menciona como exemplos o aumento de ocorrências de fuzis dessa procedência sendo usados em roubos a banco e apreensões de armas de grosso calibre junto a integrantes de grupos criminosos com extensa ficha criminal pregressa. 

    “A nossa avaliação é que o Exército teve uma atuação vergonhosa nesse campo. A gente faz o acompanhamento de controle de armas e munições há décadas e sempre teve críticas sobre a qualidade da fiscalização das Forças Armadas, com casos de conflitos de interesse claro por militares que foram trabalhar na indústria de armas. Mas o pior de tudo foi ver o Exército dizendo ‘amém’ a todas as vontades que o governo eleito quis fazer”, enfatiza.

    Atribuições do Exército podem ser revistas no futuro

    O ex-governador do Maranhão Flávio Dino é o nome mais cotado até o momento para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública e já se reuniu, no dia 17 de novembro, com o atual ministro Anderson Torres.  Além do tema das armas, sua equipe se debruça sobre outros cinco temas principais: Amazônia, homicídios, fronteiras, drogas e o papel das polícias, em especial da PRF (Polícia Rodoviária Federal). Um relatório deve ser divulgado até 12 de dezembro.

    Dino também se reuniu nesta quarta-feira (23) com secretários de segurança pública estaduais, que foram convidados a participar da elaboração de planos de ação a partir de janeiro. Uma das preocupações já declaradas é com regiões que apresentaram uma explosão no número de clubes de tiro e armas regularizadas, que seriam incompatíveis com o número de caçadores, atiradores e colecionadores cadastrados.

    “Um dos lugares onde mais cresceu o registro de armas e clubes de tiros foi a região Norte, que é a região que também teve a maior alta de homicídios nos últimos anos, na contramão do que tivemos no resto do Brasil. E quando a gente analisa o número de clubes de tiros por unidades da federação, vemos que há cidades muito pequenas com dois clubes de tiro, algo que de fato perguntar qual a intenção mesmo desse crescimento”, alerta o porta-voz do Sou da Paz.

    Como meta de longo prazo, há também um anseio antigo de organizações da sociedade civil em reverter uma lógica que permaneceu imtacta após a redemocratização do Brasil após a ditadura militar (1964-85). 

    “O que o tiro esportivo tem a ver com a missão constitucional do Exército brasileiro, que é prioritariamente de defesa nacional? O que a caça, que na verdade nem é permitida no Brasil, tem a ver com a missão do Exército? É uma série de perguntas que o Brasil vai precisar enfrentar e a gente espera que, cada vez mais, para que isso seja unificado, centralizado e debaixo de um controle civil”, finaliza Langeani. 



    domingo, 27 de novembro de 2022

    O que leva um patriota a vaiar a celebração dos gols do Brasil na Copa?

     

    OPINIÃO

    O que leva um patriota a vaiar a celebração dos gols do Brasil na Copa?

    Desde 31 de outubro, bolsonaristas protestam em frente ao quartel do GAC, em Jundiaí (SP). Durante a estreia do Brasil na Copa do Qatar, vaiavam a cada gol da Seleção - Felipe de Souza/UOL
    Desde 31 de outubro, bolsonaristas protestam em frente ao quartel do GAC, em Jundiaí (SP). Durante a estreia do Brasil na Copa do Qatar, vaiavam a cada gol da SeleçãoImagem: Felipe de Souza/UOL


    Bertioga, no litoral paulista, tem algumas das praias mais conhecidas da costa brasileira. Tem a da Enseada, do Itaguaré, do Indaiá e da Vista Linda — o nome é autoexplicativo.

    Tenho amigos capazes de passar dez horas numa estrada em dia de feriado só para poder molhar os pés na água e ver o mar antes de voltar à rotina cinzenta das grandes cidades.

    Não conhecia quem tivesse feito o caminho contrário em data festiva, até saber da história de um casal que pegou a estrada no dia do jogo de estreia da seleção brasileira na Copa do Qatar, na quinta-feira (24), para se juntar a um agrupamento de verde e amarelo às margens da rodovia Anhanguera, em Jundiaí. Deve ser mesmo um programão trocar a areia da praia pela fuligem do concreto e do asfalto.

    Embora devidamente trajados com as cores da bandeira nacional, ninguém estava ali para festa, segundo o relato do repórter Felipe de Souza, que assistiu ao jogo da seleção com a turma.

    "Copa tem de quatro em quatro anos e nesse momento preferimos ajudar o Brasil", disse o patriota de Bertioga ao se somar às fileiras golpistas em frente a um quartel.

    Mas ajudar como? Pedindo que os militares saiam da caserna para distribuir bofetadas em brasileiros que teoricamente não sabem o que fazer com essa tal liberdade.

    Parece estranho, e é.

    O dia de estreia do Brasil no Mundial foi uma dessas datas que serão lembradas pelo curto-circuito no sistema nervoso dos nativos.

    Torcedores que não queriam saber de política tinham receio de serem confundidos com eleitores que não queriam saber de Copa. E eleitores que não queriam saber de Copa tinham receio de serem confundidos com simples torcedores.

    O desgosto estava escancarado na fala de um manifestante de Jundiaí que confidenciou a um amigo: não torceria pela seleção canarinho e pronto. A bronca se direcionava àquele "monte de gente desesperada querendo chegar em casa pra ver essa porcaria".

    Tenho amigos que, por suas razões, não gostam nem simpatizam com a seleção brasileira desde sempre. Mas é a primeira vez que vejo gente que passou os últimos quatro anos vestindo a camisa da CBF dizer que, no fundo despreza, a seleção de seu país. Tem lógica?

    Deve ter.

    Jair Bolsonaro, que tantas vezes vestiu camisas de times e foi aos estádios em busca de votos, não postou nenhuma linha, em suas redes, sobre o jogo da seleção. Os filhos, idem.

    Era como se a seleção, de repente, tivesse perdido para eles a utilidade como símbolo.

    (Na ditadura, quando a Seleção de 1970 se confundia com o ideal de Brasil Grande vendido pelos militares, resistir era celebrar cada gol da equipe sem cair no ufanismo barato. O filme "O ano em que meus pais saíram de férias" mostra que até presos políticos vibravam com Pelé e companhia. Essa alegria não lhes foi podada.)

    Entender o bolsonarismo é hoje um dos desafios mais complexos das ciências humanas. Embora, vistos de longe, todos se pareçam, há diferenças fundamentais entre as muitas camadas de eleitores que se fantasiam de verde e amarelo para comunicar seus afetos políticos.

    Tem os que se acoplam ali por rejeitar as outras opções. Tem os que se viram representados por um discurso calcado numa certa liberdade que rejeita normas e o tal politicamente correto. Tem quem se identifique com o jeitão errático de seu mito fundador. Tem quem viu no movimento uma chance de alavancar os negócios e ganhar dinheiro.

    E tem quem goste de sofrer.

    É o que se pode concluir quando alguém abre mão de uma vida minimamente interessante para se sentar numa beira de rodovia, orar diante de um pneu, chamar extraterrestres para exterminar nossa espécie e pedir a militares que tomem o poder e nos disciplinem, como faziam os antigos professores com suas palmatórias.

    Por alguma razão, o discurso militarista de Bolsonaro — aliás um mau militar, diria Ernesto Geisel — deixou muita gente sonhar com a restauração de uma ordem disciplinar que se supunha debilitada pelos novos tempos, libertários demais, com direitos demais e deveres de menos — frases recorrentes em qualquer roda de conversa entre representantes da nova direita brasileira.

    Por isso, para essa ala específica (a que não aceitou a derrota e ainda não virou a chave das eleições), precisamos de medidas corretivas. E quem poderá nos corrigir se não as instituições que atravessaram os novos tempos com uma base hierárquica intacta, como as Forças Armadas e as igrejas? O que podemos querer, diante de um mundo de múltiplas possibilidades, se não alguém que nos diga o que é certo e o que é errado e que nos puna, caso alguém saia da linha? Não é mais confortável?

    No livro "Discurso sobre a servidão voluntária", Étienne de La Boétie coloca no centro da análise não o tirano, mas as pessoas tiranizadas que, por alguma razão, se submetem e passam a cultuar a figura do opressor. Ali estão muitas das chaves de compreensão sobre o que acontece hoje em um país (ainda) governado por quem cultua torturador, defende a ditadura e emprega aliados defensores de castigos físicos, porrada em adversários e por aí vai.

    Ao saber que, durante o jogo do Brasil, bolsonaristas reunidos em frente a um quartel em Jundiaí vaiaram os compatriotas que celebravam os gols de Richarlison, fica difícil não se lembrar da resposta de Jorge de Burgos, o soturno personagem de "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, ao ser questionado sobre o que havia de tão alarmante no riso.

    "O riso mata o medo e, sem medo, não pode haver fé. Sem medo do diabo não há mais necessidade de Deus."

    Os gols de Richarlison levaram boa parte do país a explodir de emoção, choro e riso. E isso, para muita gente, também precisa ser contido. Já pensou se a moda pega?

    O suposto patriota que vai às ruas expressar a sua pulsão de morte é uma figura que tem horror às manifestações mais festivas de seu país, como o samba, o Carnaval, as danças de rua, as artes e as diversas formas de afeto presentes na música, nos filmes e nos livros. Muitos deles têm horror também a futebol, Copa, sambinha e a ideia de que um país atravessado por injustiças pode encontrar nos intervalos de tanta dor uma potência política represada.

    O que une a turma é o desprezo, só artificialmente identificado em um partido político ou grupos sociais específicos. O que a turma despreza, no fundo, é a alegria.

    Colunista do UOL

    27/11/2022 04h00

    sábado, 26 de novembro de 2022

    Eleitora de Lula, Professora Flavia Amoss Merçon Leonardo,quarta vítima de atentado em Aracruz (ES) defendia causas ambientais

     Professora vítima de atentado em Aracruz (ES) defendia causas ambientais - Reprodução

    Eleitora de Lula, Professora Flavia Amoss Merçon Leonardo,quarta vítima de atentado em Aracruz (ES) defendia causas ambientais

    Vinícius Rangel

    26/11/2022 

    Professora e socióloga apaixonada pela profissão, dedicada à defesa do meio ambiente e a causas sociais. Assim era conhecida Flavia Amoss Merçon Leonardo, 38 anos, a quarta vítima dos ataques a tiros a escolas em Aracruz (ES), na sexta-feira (25). Além dela, outras duas professoras e uma estudante de 12 anos morreram.

    Além de dar aulas, Flavia fazia doutorado em Antropologia na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e era bolsista da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Era formada em Ciências Sociais pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), com mestrado na mesma instituição. 

    Pesquisadora e atuante em movimentos sociais 

    O programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo lamentou a morte de Flavia. "As Ciências Sociais perdem, hoje, uma pesquisadora com um futuro promissor, que contribuiu grandemente para debater as repercussões do desastre-crime na bacia do Rio Doce [decorrente do rompimento da barragem de Mariana, em 2015] a partir da perspectiva das populações atingidas". 

    "A sociedade perde um ser humano engajado num mundo melhor, mais digno e igualitário, e uma professora que vislumbrava no magistério um caminho de mudança", prosseguiu o programa de pós, em carta aberta. 

    Dayane Souza, colega de Flavia no mestrado, se lembra com orgulho da amiga. "Ela era conectada com a natureza, socióloga engajada na questão do meio ambiente. Fará muita falta com certeza. Muita dor ver uma colega de área perder a vida dessa forma tão revoltante"

    Iriny Lopes, deputada estadual eleita pelo PT, usou as suas redes sociais para falar da participação da socióloga em movimentos sociais e partidários. 

    "Deixo aqui meu carinho e solidariedade à família da Flavia e ao seu companheiro, João Paulo Izoton, um querido amigo. A última lembrança que terei da Flavia será da campanha no segundo turno. Ela, João e o pessoal do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) participaram ativamente pela eleição do Lula", contou a deputada. 

    Iriny pontuou ainda que Flavia foi "mais uma vítima de uma política armamentista, de morte, cultivada há quatro anos por Bolsonaro. Essa ideologia fascista, neonazista têm feito muitas vítimas nesse país, entre elas Flavia e as demais vítimas fatais dessa tragédia em duas escolas de Aracruz", finalizou Iriny na sua rede social. 

    O atentado 

    Duas escolas foram alvo de um atentado a tiros, na manhã de ontem, em Aracruz, no litoral norte capixaba, cidade localizada a 81 km de Vitória. A ação teve quatro mortos e 12 feridos (cinco seguem internadas, a maioria em estado grave), de acordo com a Secretaria Estadual de Segurança Pública do Espírito Santo. 

    Um adolescente de 16 anos foi apreendido, suspeito do crime. Segundo a Polícia Civil, ele é filho de um tenente da Polícia Militar e se entregou no momento da detenção. Foi apreendido em casa. O adolescente estaria portando duas armas de fogo, um revólver calibre 38 e uma pistola .40, que pertencia ao pai. 

    De acordo com o capitão da PM Sérgio Alexandre, o atirador estava munido ainda de carregadores quando invadiu a primeira unidade de ensino. Ele teria ido diretamente à sala dos professores, onde ameaçou profissionais no local e deu início aos disparos. Em seguida, foi até a segunda escola, localizada na mesma avenida.