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Detentos
participam de apresentação do projeto Portas Abertas: desenvolvido
pela Universidade de Brasília, o programa tem participação da
professora Maria Luzineide Costa Ribeiro |
O
último livro que Luiz Carlos*, 30 anos, leu foi Quando Nietzche
chorou, romance de Irvin D. Yalom sobre o filósofo alemão do século 19.
“Nietzche sabia aproveitar suas depressões, em vez de fazer delas um
inferno. Por isso, gostei bastante”, comenta.
Luiz é um leitor
comum. Talvez incomum seja o local onde ele aproveita a leitura.
Atualmente, o rapaz cumpre o nono dos 12 anos e 10 meses de pena por
homicídio e assalto, detido em regime fechado na Penitenciária do
Distrito Federal I (PDF I), no Complexo da Papuda. Antes, costumava ler
apenas o que era cobrado no ensino médio, mas, na prisão, os livros se
tornaram um prazer, uma forma de preencher o ócio e uma via de escape.
Não é raro isso acontecer. A conclusão é de uma pesquisadora da
Universidade de Brasília (UnB): Luiz não foi o único a mudar os hábitos
de leitura depois de ir para a cadeia.
No ano passado, a então
mestranda em letras pela UnB Maria Luzineide Costa Ribeiro aplicou
questionários entre 200 internos da PDF I e da Penitenciária Feminina do
Distrito Federal (Comeia) e mapeou os hábitos de leitura dentro das
celas. O estudo constatou que, depois de serem presos, o interesse pelos
livros por parte dos detentos da PDF I aumentou em 52%. “É considerado
leitor assíduo quem lê entre dois e três títulos por mês. No presídio,
em torno de 70% dos internos se encaixam nessa categoria”, garante
Luzineide. Na Comeia, o índice alcança os 40%.
O que motiva a
procura pelas obras varia. Joesley*, 30 anos, foi sentenciado a cinco
anos e 11 meses de prisão por tráfico. Hoje, dedica o tempo a ler a
Bíblia, mas também gosta de romances policiais e livros espíritas. “Eu
leio para ocupar o tempo livre, mas também por prazer e para estudar”,
resume.
O questionário mostrou que outros presos têm opiniões
parecidas. Na PDF I, 54% associaram a leitura à busca de conhecimento
formal, com objetivo de ampliar a visão de mundo e facilitar a
convivência com pessoas. “Muitos vincularam o hábito com a possibilidade
de sucesso profissional e de escrever melhor. Uma boa parte do grupo
mostrou acreditar, também, que ler os torna informados e,
consequentemente, menos agressivos”, esclarece a pesquisadora.
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Condenado por tráfico, Joesley*, 30 anos, gosta de ler a Bíblia, romance policial e livros sobre espiritismo |
Outros
38% afirmaram que a atividade representa um prazer na rotina. “Para
eles, é uma maneira de acalmar e diminuir a tensão do ambiente”,
acrescenta Luzineide, ex-professora do sistema prisional. Na Comeia, os
resultados apresentaram algumas diferenças. “Mais da metade das
mulheres procura conhecimento na leitura. Cerca de 20%, no entanto, se
apoiam nos livros para combater a depressão, principalmente causada
pela saudade dos filhos e da família”, descreve a pesquisadora.
Remissão de penaOs
detentos Luiz Carlos e Joesley foram pré-selecionados, neste mês, para
participar do primeiro ciclo do projeto Portas Abertas, desenvolvido
pela Universidade de Brasília (UnB), a princípio, na PDF I, a fim de
observar detentos que visam à remissão de pena por meio da leitura. O
programa segue a orientação da Portaria n° 276 do Departamento
Penitenciário Nacional (Depen), aprovada em junho do ano passado, e
determina que o preso pode diminuir até 48 dias de pena se ler um livro
mensalmente e apresentar uma resenha sobre cada obra no fim do mês.
O
projeto terá professores e alunos da UnB para elaborar uma lista de
obras literárias recomendadas para internos a partir do 9º ano que
queiram ganhar o benefício. A equipe se encarregará da correção das
resenhas entregues pelos detentos, que precisam obter média de 7.
Para
o diretor da PDF I, Celso Wagner Lima, a remissão pode ser um
incentivo. “Só podem participar do projeto aqueles que tenham bom
comportamento, então, o programa já influencia nisso”, argumenta. “E é
mais uma oportunidade trazida pela leitura, que também ajuda a melhorar o
raciocínio e a escrita dos presos”, acrescenta Lima.
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Luiz Carlos* cumpre pena por homicídio e assalto: leitura diminui o ócio |
No entanto, há quem se oponha à diminuição de pena por meio da
leitura, como o promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito
Federal (MPDFT) Newton Cezar Valcarenghi Teixeira. “Acho
importantíssimo que os detentos tenham acesso à educação e aos livros,
porque é importante para a ressocialização. Mas dar a possibilidade de
remir pena graças à leitura, sendo que há outras formas, passa a imagem
de que não existe efetividade no cumprimento das penas”, argumenta.
BibliotecasA
PDF I possui duas bibliotecas, batizadas em homenagem aos escritores
Graciliano Ramos e Monteiro Lobato. Ao todo, são oito mil títulos
variados, desde clássicos da literatura brasileira e estrangeiras até
livros de estudo de português e direito — excluindo obras com conteúdo
pornográfico ou que incitem o crime.
A maior parte do acervo é
produto de doações. Detentos que tenham bom comportamento ganham o
direito de pegar um livro emprestado. Alguns internos, porém, reclamam
de condições estruturais. “Gosto muito de ler, mas fica difícil, porque
minha cela é muito lotada de gente. Com tanto barulho, é difícil se
concentrar”, queixa-se Joesley. Para Luiz Carlos, a disponibilidade de
títulos no acervo poderia melhorar. “Alguns livros são muito
ultrapassados, principalmente os de estudo”, opina.
O
levantamento registrou que, entre os detentos na PDF I que se disseram
não leitores, 60% argumentaram não ter o hábito por ausência de
orientação e 40% por falta de condições psicológicas.
Segundo a
pesquisa, as preferências de leitura entre os detentos mudam, inclusive,
de acordo com o histórico criminal. “Internos cumprindo pena por
assalto preferem livros de aventura; os condenados por tráfico ou
homicídio são adeptos a obras de tom religioso, e os culpados por crimes
sexuais têm preferências por autoajuda amorosa”, define Luzineide.
* Sem sobrenome para preservar a identidade dos detentos
"Internos
cumprindo pena por assalto preferem livros de aventura; os condenados
por tráfico ou homicídio são adeptos a obras de tom religioso, e os
culpados por crimes sexuais têm preferências por autoajuda amorosa”Maria Luzineide Costa Ribeiro, 30 anos, pesquisadora
Os preferidosVeja os títulos mais populares em cada bloco das penitenciárias:
- Comeia (feminino): Aprendendo a conviver com quem se ama, de Neale Donald Walsch
- Bloco D (homicídio e tráfico): Ágape, de padre Marcelo Rossi
- Bloco E (penas curtas): obras de Sidney Sheldon
- Bloco F (crimes sexuais): Um estranho no espelho, de Sidney Sheldon
- Bloco G (crimes contra o patrimônio): Divina revelação do inferno, de Mary Baxter
Depoimento
“Aprender a viver” “Enquanto
o mundo livre acelera-se na livre concorrência e nas regras comerciais
do momento, o homem preso deita-se no nojento colchão, abre um
empoeirado livro e lê. Em segundos, ele estará lutando em alguma cruzada
do passado ou estará entendendo com Sócrates o mundo das ideias ou
ainda estará resolvendo um problema matemático de geometria. Quando o
sistema o libertar, ele se arrependerá das horas que passou sem a
companhia do livro. Que ele tenha a sorte de conquistar um tempo de sua
vida para continuar a crescer, aprender a viver, amar e dar mais um
salto.”