quinta-feira, 1 de abril de 2021

HISTORINHAS FORA DO ARMÁRIO Como a literatura infantil contribui para novos olhares sobre a família

MAYARA PENINA, DO "NÓS, MULHERES DA PERIFERIA" COLABORAÇÃO PARA ECOA, DE SÃO PAULO (SP) Montagem Provavelmente, você deve se lembrar da fábula "O patinho feio", de Hans Christian Andersen. Na história, depois de se sentir muito diferente de seus irmãos por ser grande e cinza, o patinho descobre que era, na verdade, um cisne encantador. Nesse conto, vemos que a diferença em um mundo homogêneo vem acompanhada pela reprovação de quem não te vê como igual. A leitura das obras "Olívia tem dois Papais", de Márcia Leite, "Princesa Kevin'', do francês Michaël Escoffier, e "Se Deus me chamar não vou", de Mariana Salomão Carrara, foi o pontapé inicial para esta reportagem. Todas essas obras nos fazem pensar sobre a possibilidade de ser e estar no mundo como família. E sobre o que falam esses três livros? Um menino que gostaria de se fantasiar de princesa, uma menina que tem dois papais (Raul e Luís), uma pré-adolescente cuja mãe e o pai acabam por namorar um terceiro rapaz... Qual é o papel da literatura para adultos e crianças ao abrir novas possibilidades de olhar sobre famílias e suas composições? Para a educadora Bel Santos Mayer, a "literatura tem uma responsabilidade bastante grande em nos possibilitar o imaginário com outros mundos e construir a sociedade que a gente deseja, e não apenas reforçar os estereótipos e preconceitos existentes". Ela defende que, da mesma maneira de outras linguagens artísticas como o cinema e o teatro, a literatura pode ser uma oportunidade de experimentar o que é novo. Isso nos dá a possibilidade de encontrar um caminho pra conversar com as crianças, que é o caminho de naturalizar essas relações, e para nós adultos é a oportunidade que as crianças nos dão de nos questionar e conseguir deixar os nossos pré-conceitos e estereótipos um pouquinho de lado pra gente ver a humanidade que há nessas relações. Kiusam de Oliveira, escritora e professora Renato Parada /Divulgação Pluralidade e potência A escritora e professora Kiusam de Oliveira também acredita que livros infantis bem escritos e que tratam de assuntos profundos são capazes de apresentar caminhos de um pensar autônomo e crítico para crianças de qualquer idade. "O mesmo se dá aos adultos, certamente. E tenho percebido, ao longo dos anos, que a literatura infantil e o contato com os livros infantis são retornos afetivos necessários, principalmente, às mulheres adultas", diz Kiusam a Ecoa. Kiusam é considerada umas das dez escritoras mais importantes para formação infantil pela ONU (Organização das Nações Unidas). Embora seus livros sejam voltados ao público infantil, eles contam com temáticas atuais que conseguem conduzir amplos debates na sociedade. "Se autoras e autores tiverem consciência de que vivemos num país onde a pluralidade está posta, acreditando ser este ponto a grande potência do país, certamente poderão construir um imaginário incrível nas histórias infantis", diz Kiusam. Ela também alerta para o fato de que o direito à diversidade não tem sido bancado com tranquilidade pelas editoras que, pressionadas pela atual conjuntura do país, preferem aderir aos temas mais tradicionais e menos polêmicos para as publicações. "Eu tenho dito que a literatura, além de ser um direito humano pode ser cura, desde que quem escreva esteja atenta para as necessidades do mundo que nos rodeia", diz A gente tem que procurar ser menos previsível e estar mais à disposição para ser estimulado e não ser aquele que estimula apenas Maitê Freitas, fundadora da Oralituras, editora destinada a facilitar os processos de produção literária de escritoras negras e indígenas. Literatura como cura A educadora Bel Santos Mayer também menciona a literatura como cura. Bel é coordenadora do Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário), e co-gestora da LiteraSampa, rede de bibliotecas comunitárias e escolares em São Paulo. Ela enxerga o livro como uma possibilidade de conversas. "Ele chega como uma forma de cura mesmo. Não porque vai trazer todas as respostas, mas porque pode nos ajudar a formular melhor as perguntas e conversar". "A gente precisa construir caminhos em que os educadores relembrem que brincar não é só um verbo, mas uma ação que se dá no nosso corpo, que se dá na nossa disposição em se tornar mais flexível, em se tornar mais maleável aos estímulos daquilo que é espontâneo.", diz a jornalista Maitê Freitas, fundadora da Oralituras, editora destinada a facilitar os processos de produção literária de escritoras negras e indígenas. Divulgação O adulto mediador de leitura Maitê Freitas acredita que a literatura voltada para as infâncias é a mais completa no que diz respeito ao trato editorial. "O livro ocupa o corpo da criança, ele não fica só no lugar da cabeça, desse espaço mental que os livros adultos têm. Nós, adultos, precisamos voltar a lembrar que a gente tem corpo, que a gente também é sensorial", diz. Por isso, ela que é mãe da Ilundy Airá, de dois anos, entende o papel do adulto nesta mediação como o de estimular que a criança compreenda no corpo a mensagem, e que, então, o adulto também entre no jogo. "Eu acho que uma literatura infantil potente liberta corpos", diz. Kiusam acrescenta que nos processos educativos infantis não há espaço para enganos tampouco para superficialidades. "Tudo é muito profundo, as relações são sempre profundas. Sendo assim, nada mais adequado do que a profundidade atingir primeiramente o ser que se propõe ou julga estar apto a educar alguém". A educadora afirma que a coragem para compreender todas as tensões dentro de si é condição essencial para que verdades sejam acessadas e, assim, transformadas para o melhor. "As histórias são capazes de abrir clareiras incríveis na mata fechada da mente, e isso se dá por conta do campo sensível aberto por elas, uma vez que o imaginário está diretamente ligado ao movimento da memória, pautado na emoção que somente as artes são capazes de despertar", diz Kiusam. Bel Santos coordena o projeto LiteraSampa, formado por quatorze bibliotecas comunitárias e duas escolares na cidade de São Paulo, cujo objetivo é fomentar a leitura literária nas suas respectivas regiões. Em suas formações, costuma dizer que um mediador de leitura é, acima de tudo, um leitor; ele não lê só a literatura pensada para crianças, ele lê também para adultos. "Muitas vezes a criança nem sabe que livro ele quer, ela sabe, às vezes, o que ela está sentindo, e quem pode indicar um livro é o mediador ou a mediadora de leitura".