domingo, 6 de setembro de 2020

Autores celebram 60 anos de 'Quarto de Despejo', de Carolina Maria de Jesus

 


Carolina Maria de Jesus durante noite de autógrafos do lançamento de seu livro "Quarto de Despejo", em uma livraria na rua Marconi, em São Paulo (SP). (São Paulo (SP), 09.09.1960. Imagem: 

André Bernardo/Colaboração 

Em abril de 1958, o jornalista Audálio Dantas (1929-2018) foi escalado para fazer uma reportagem na favela do Canindé, zona norte de São Paulo. O objetivo da pauta era mostrar o dia a dia da comunidade às margens do rio Tietê. Durante a apuração da matéria, ouviu alguém berrar: "Deixa estar que eu 'boto' vocês no meu livro!". A dona do berro era a moradora do barraco 9 da rua A, que defendia um garoto das agressões de dois homens que queriam expulsá-lo dos brinquedos de um parque infantil recém-inaugurado. "Que livro é esse?", quis saber o repórter. "O que estou escrevendo sobre as coisas da favela", respondeu a mulher.

Nascia ali a amizade entre Audálio Dantas, o repórter, e Carolina de Jesus (1914-1977), a escritora. O tal livro a que ela se referia, escrito em mais de 20 cadernos encontrados nos lixões da cidade, era "Quarto de Despejo - Diário de Uma Favelada", que completa 60 anos no próximo dia 30..

"Quando Audálio se deparou com Carolina, ela já tinha um histórico de militância nos jornais: desde o início de 1940, já concedia entrevistas para divulgar textos de sua autoria", explica o jornalista e biógrafo Tom Farias, autor de "Carolina - Uma Biografia (2017)". "Não foi necessariamente uma descoberta, foi um encontro da casualidade. Audálio e Carolina estavam no lugar certo, na hora certa. Um ajudou o outro: ela conseguiu publicar seu livro e ele se tornou um dos jornalistas mais conhecidos do Brasil"...

De volta à redação, Audálio passou a contar a história da mineira de Sacramento que tentava ganhar a vida em São Paulo como catadora de papel para criar, sozinha, os três filhos pequenos — João, José e Vera. Em pouco tempo, reportagens, como "O drama da favela escrito por uma favelada", publicada na edição do dia 9 de maio de 1958 do jornal Folha da Noite, chamaram a atenção da Editora Francisco Alves — que ofereceu dois mil cruzeiros pelos direitos de "Quarto de Despejo". Com a venda de material reciclável, Carolina não ganhava mais do que vinte cruzeiros por dia. O título da obra, aliás, foi sugestão da própria autora. Para Carolina, a favela era o "quarto de despejo" da sociedade brasileira. "Estou no quarto de despejo. E o que está lá, queima-se ou joga-se no lixo", escreveu. A tiragem inicial, de 10 mil exemplares, se esgotou na primeira semana. Estima-se que, ao todo, "Quarto de Despejo" tenha vendido 80 mil exemplares. Em meses, entrou para a lista dos mais vendidos, desbancando, entre outros, "Gabriela" (1958), de Jorge Amado, e merecendo elogios de Ferreira Gullar (1930-2016), Manuel Bandeira (1886-1968) e Clarice Lispector (1925-1977). "Você é a única que conta a realidade", disse a autora de "A hora da estrela" (1977). Não parou por aí. Traduzido para 14 idiomas e publicado em 46 países, "Quarto de Despejo" virou matéria em jornais e revistas do .do mundo inteiro, como Times, Life e Le Monde. Na Itália, ganhou prefácio do escritor Alberto Moravia (1907-1990); em Portugal, sofreu censura do ditador Antônio Salazar (1889-1970). "Quarto de despejo se configura como documento histórico ao trazer a fome para o centro da narrativa. É a primeira vez que o processo de modernização excludente posto em prática no Brasil é narrado em detalhes por uma de suas vítimas. Quem faz a crítica não é o pesquisador, nem o estudioso, é uma mulher do povo, que tem que catar no lixo a própria sobrevivência. E isto no momento em que se inaugura Brasília, como símbolo do que seria o 'novo' Brasil", analisa o professor Eduardo de Assis Duarte, coordenador do portal Literafro, de Literatura Afro-Brasileira, da Faculdade de Letras da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Com o dinheiro do livro, Carolina comprou uma casa em Santana, bairro de classe média na zona norte de São Paulo. Pouco depois, vendeu a casa e comprou um sítio na região de Parelheiros. Lançou mais três livros: "Casa de Alvenaria" (1961), "Pedaços de Fome" (1963) e "Provérbios" (1963). Nenhum deles repetiu o sucesso do livro de estreia e, a certa altura, a escritora voltou a vender papelão para sobreviver. Vítima de bronquite asmática, Carolina Maria de Jesus morreu no anonimato e na pobreza, em 13 de fevereiro de 1977, aos 64 anos. "Sua obra foi sequestrada pelo 'memoricídio' que sempre se abate sobre tudo o que vai além do mainstream acadêmico e editorial, sobretudo no que diz respeito à literatura negra e/ou feminina. Digo sempre: nenhum país passa impunemente por mais de 300 anos de escravidão e, talvez, essa herança maldita ainda perdure por um bom tempo", lamenta Eduardo de Assis Duarte, da UFMG..