terça-feira, 9 de agosto de 2011

A cultura e os livros na velha Piratininga



Publicado por admin - Sunday, 7 August 2011
LANÇAMENTO
Em Império dos Livros, a historiadora Marisa Midori Deaecto traça um importante e bem estruturado painel dos hábitos de leitura na São Paulo do século 19
LINCOLN SECCO
Especial para o JORNAL DA USP
Um belo livro sobre livros. Outra não poderia ser a combinação para este Império dos Livros, da historiadora Marisa Midori Deaecto, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A obra – que será lançada no próximo dia 17, na Livraria João Alexandre Barbosa – vem a lume em cuidadoso trabalho da Editora da USP (Edusp). São 448 páginas em papel chamois, encadernada em capa dura de tecido e sobrecapa de papel. O grosso volume em formato 16 por 23 cm esconde ilustrações e mapas especialmente elaborados para esta edição.
Difícil definir a obra. É, seguramente, uma história de São Paulo através da formação de sua primeira Biblioteca Pública e de sua Academia de Direito, das novas gentes que ela atraiu e dos circuitos de consumo de bens culturais que a urbe estimulou. Mas é também uma história dos espaços de sociabilidade que o livro proporciona.  Não tanto dos salões literários, que só a Marquesa de Santos manteve com intuitos políticos de uma dama avançada para sua época, mas dos locais escassos em que os livros se deixavam consultar em horários encurtados, já que escasseavam as luzes.
Mais tarde, com luz elétrica, os horários de funcionamento da Biblioteca da Academia de Direito, os cafés e as livrarias indicam que o livro deita raízes, torna-se bem de herança e também de produção com a multiplicação das tipografias.
Cidade espiritual – Todo este percurso atravessa os capítulos bem escritos e ordenados pela autora. São Paulo é, de início, a “cidade espiritual”: uma urbe em potência em que as primeiras instituições culturais ainda não determinam as práticas de leitura, tão rarefeitas no Brasil de ontem e de hoje. A acanhada cidade ganha seu curso jurídico por decreto em 1827, dois anos depois de consolidar sua biblioteca pública, formada pelas “livrarias” (assim se chamavam os acervos) do Convento dos Franciscanos e do bispo diocesano d. Mateus de Abreu Pereira.
Os franciscanos perderam sua coleção de vidas de santos, obras teológicas e canônicas. Já a livraria de d. Mateus era, em parte, provavelmente herança da famosa biblioteca do terceiro bispo de São Paulo, d. Manuel da Ressurreição (1772-1789), proprietário, nos fins do século 18, de 1.059 volumes (talvez mais).  E ali os temas setecentistas que bordejavam as luzes estavam presentes, como revela Marisa Deaecto.
Charge sobre a Livraria Garraux (ao lado) e etiquetas da mesma livraria (acima): livro reconstitui a história de São Paulo através da formação da sua primeira Biblioteca Pública e de sua Academia de Direito
A conformação da cidade espiritual, portanto, foi em tudo resultado não só das condições geográficas da Vila e de suas tradições, mas de um projeto iluminista propiciado pela conjuntura política do Primeiro Reinado, em que São Paulo foi palco de uma  Bernarda (a pequena  insurreição  de sua elite), da  independência política e dos amores de D. Pedro I.
Assim, mesmo antes de ter um “povo” num país de escravos, as letras impressas e as livrarias foram se afirmando com a lentidão peculiar aos paulistas. Por todo o oitocentismo a autora nos mostra a distância entre as práticas de leitura toscas de uma classe de mandões locais e as exigências de refinamento das luzes. Eram gentes gradas que não devolviam os livros emprestados, estudantes que arrancavam folhas de tratados para “estudar em casa” e tantos outros crimes. E não cabe aqui narrar o estranhíssimo incidente do padre José Antonio dos Reis, o bibliotecário. Que a sede do leitor seja saciada com a leitura da obra de Marisa Deaecto.
Outros incidentes, o périplo de Álvares de Azevedo com suas encomendas de belas obras de Lamartine, os preços, os inventários, a cartografia do livro, as instituições de leitura, o aparecimento dos catálogos, o comércio francês, os espaços de consumo e até belas notas acerca de negociantes e amadores. Aliás, esta última palavra comporta a dubiedade do amante e do pobre amador ante o profissional que cobra preços dilatados. Isto em razão de uma paixão insegura que nutrimos pelos livros enquanto objetos que se manuseiam com os olhos e demais sentidos.
O próprio livro de Marisa Deaecto já nasce como objeto do bibliófilo. Não só pela precoce erudição da autora, afinal ela comenta com precisão cada detalhe tipográfico, os formatos, os autores, as várias edições, as traduções e os editores. Guiado por ela, o leitor não tem diante de si meros catálogos vazios ou inventários sem vida.  Ela desce a minúcias documentais e afirma que a famosa biblioteca de dona Genebra, por exemplo, não pertencera ao seu marido, o brigadeiro Luiz Antonio, de velhos troncos paulistas, mas sim ao baiano José da Costa Carvalho, a quem ela se ligou em segundas núpcias. Estudado em Coimbra, este parvenu adotou São Paulo e foi diretor da Faculdade de Direito.
A autora também conjumina descrição de paisagens, análise teórica e pequenas narrativas que encantam a leitura. Sua linguagem segura, por vezes sincopada, adentra até meandros do recinto familiar. Ela nos dá em primeira mão detalhes da vida de Anatole Louis Garraux, por exemplo. O estudo de seu testamento escavado na França e cotejado com a escassa bibliografia existente lança luz sobre o livreiro que deixou marcas profundas em São Paulo e terminou seus dias em Paris dono de uma fortuna considerável, situando-se na alta burguesia francesa.
O presente livro surge como um clássico, síntese de muitas determinações da vida material e espiritual, reunindo a maior parte da literatura e documentação disponíveis para montar uma visão de conjunto da elite econômica e intelectual de São Paulo e até mesmo do Brasil oitocentista, já  que pela Academia de Direito passaram os mais importantes membros da classe dominante.
Das classes dominadas ainda não se fala. Como a autora demora propositalmente a dizer (somente na página 230), é só na margem do novo século que a imprensa operária será um fato permanente, o que indica a presença de um “novo tipo urbano, ou antes, de uma classe”. É que, consoante conclui a autora, a história do livro reproduz a história da burguesia, de seus valores e limites.
A história da literatura operária, de seus impressos e leitores, é outra.
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
O Império dos Livros, de Marisa Midori Deaecto, Edusp, 448 páginas. O lançamento será no dia 17 de agosto, na Livraria João Alexandre Barbosa, na Cidade Universitária, a partir das 18h.
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