domingo, 26 de junho de 2011

Moby Dick e o Público Juvenil



O jornal Público, nos últimos dois anos, contribuiu empenhadamente para o enriquecimento de muitas bibliotecas privadas. Na Colecção Mil Folhas publicaram-se dezenas de obras de qualidade inegável, recuperaram-se edições esquecidas e divulgaram-se, junto de leitores mais distraídos, nomes menos mediáticos da literatura mundial. Ontem, o mesmo jornal, iniciou a publicação da Colecção Geração Público, a qual é composta por vinte obras essenciais da biblioteca juvenil. Mais uma vez, a iniciativa aparenta ser meritória.
Mas uma leitura atenta da lista de livros da Colecção Geração revela-nos, pelo menos, uma grande surpresa: Moby Dick, de Herman Melville, encontra-se entre os vinte clássicos da literatura juvenil propostos pelo jornal (a escolha de O Fantasma dos Canterville, de Oscar Wilde, também causa alguma perplexidade, embora a ironia da situação seja recompensadora). As opções editoriais de um jornal devem ser respeitadas, mas não posso deixar me indignar com o rótulo, redutor, que os responsáveis da colecção atribuem, com esta escolha, à soberba obra de Melville.
Moby Dick, que já inspirou, há alguns meses, um pequeno texto publicado neste blogue, é um livro que exala o odor da morte, desde a primeira página: Sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num Novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente, quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu bom senso para não começar a arrancar os chapéus de todos os transeuntes que encontro na rua – percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio. Onde, com um gesto filosófico, Catão se lança sobre a espada, eu, tranquilamente, meto-me a bordo.
Assim fala aquele que pede que o tratemos por Ismael, o marinheiro que embarca no Pequod, túmulo da sua própria tripulação. Sepulcro de todos, excepto de Ismael, que, sem um lampejo de heroísmo que ensombre a personagem observadora mas pouco interventiva, sobrevive ao naufrágio para contar a história, o Pequod é também o palco de uma das mais belas narrativas sobre a condição humana.
Todas as semanas, um livro e um herói, anuncia o jornal Público. O herói desta semana é Phileas Fogg. Quem será o herói daqui a algumas semanas, quando encontrarmos nos quiosques o volumoso Moby Dick (esperemos que, pelo menos, se respeite o texto integral)?
Será o capitão Ahab, o louco? Será aquele que ostenta no rosto o desenho da inevitável tragédia? Será aquele que, acolitado por Fedallah, o seu tenebroso duplo, persegue o leviatão, indiferente à ameaça de uma espada de Damocles que lhe toca suavemente no pescoço, e que o sangra levemente durante as setecentas páginas do romance, antes de cair impiedosamente sobre a sua nuca há muito condenada? Ou será Queequeg, que, vendo a face do terror, a crueza do destino fatal de todos os homens, antecipado pela vontade indómita de um homem, encomenda o seu domicílio final, o qual se revela, mais tarde, um protector da bem-aventurança da sua saga? (O esquife, reduto da morte, foi, afinal, o garante da imortalidade da história.)
Talvez o herói seja Moby Dick, o cachalote Todo-Poderoso, a força esmagadora e opressora que não poupa o mortal que se atreve a desafiar o seu reino (cento e quarenta anos mais tarde, Paul Auster publica Leviathan; nesse texto, assombrado pelo pesado fantasma de Melville, e que retrata a saga terrorista de uma das personagens contra réplicas da Estátua da Liberdade espalhadas pelo país, Auster deixa poucas dúvidas em relação ao carácter “hobbesiano” do seu Leviatão; e as intenções de Melville, quais seriam?).
Moby Dick não é um livro juvenil. Moby Dick faz parte, com Ulisses de Joyce e Em Busca do Tempo Perdido de Proust, de um conjunto de romances que exigem maturidade para oferecerem maturidade (para afastar qualquer suspeita de sobranceria devo dizer que as obras de Joyce e Proust ainda descansam quase incólumes aqui ao lado, esperando outros tempos, outras idades). Desaconselho Moby Dick ao leitor juvenil? Não, as trevas que abraçam a vida, que a embalam e adormecem, para melhor a asfixiar, devem ser conhecidas e identificadas desde tenra idade. Mas aconselho releituras, no futuro, em todos os futuros. Porque os Grandes Romances, aqueles que só aparecem em lugares e em tempos abençoados, são como objectos fractais: o incremento da escala não lhes diminui a riqueza. Os Grandes Romances resistem à evolução intelectual, quiçá ad infinitum.
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