Brasília, por Clarice Lispector
Nas idas à capital federal, ela ficou surpresa com a estética e disposição da cidade moderna e registrou sua percepção em duas crônicas
Por Andréia Martins
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Clarice Lispector tinha uma questão pessoal quando o tema era pertencer a um lugar. Com Brasília, a cidade criada por Oscar Niemeyer e Lucio Costa em 1960, não foi diferente.
Suas três passagens pela cidade (1962, 1974 e 1976) e os desdobramentos literários que elas tiveram mostram uma escritora tentando decifrar a identidade de uma cidade então recém-criada, planejada, sem multidões ou esquinas e baseada no discurso oficial, como ela costumava brincar.
Na sua primeira visita, trouxe os filhos para visitar o então marido diplomata e ficou hospedada no tradicional Hotel Nacional. Nas outras vezes, atendeu a convites especiais. Em 1974 veio a convite da Fundação Cultural do Distrito Federal e também para falar com o então ministro da Educação do governo Geisel, Ney Braga, para o livro de entrevistas De corpo inteiro, e em 1976 voltou para receber um prêmio de 70 mil cruzeiros, da mesma fundação, pelo conjunto de sua obra, na Escola Parque.
Suas impressões da cidade foram registradas em duas crônicas, Brasília (1964) e Brasília: Esplendor (1974). Nos textos, a escritora expõe os efeitos que sentiu do contato com concreto armado das construções da capital, do clima seco do cerrado, da paisagem tão perfeita que parecia de plástico e da luz de Brasília (nunca ande sem óculos de sol).
Para muitos críticos, seus textos são o melhor ensaio sobre a atmosfera enigmática da cidade. Abaixo, listamos dez impressões da escritora sobre a cidade, presentes nas duas crônicas.
“ Brasília é construída na linha do horizonte. — Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília”.
“Quando a noite veio percebi com horror que era inútil: onde eu tivesse eu seria vista. O que me apavora é: vista por quem? — Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta”.
“É urgente: se não for povoada, ou melhor, superpovoada, será tarde demais: não haverá lugar para as pessoas”.
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“Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos que não eram americanos nem suecos e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. (…) Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos: eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade”.
“A luz de Brasília me deixou cega. Esqueci os óculos escuros no hotel e fui invadida por uma terrível luz branca”.
“Socorro! Socorro! Help me! Sabe qual é a resposta de Brasília ao meu pedido de socorro? É oficial: aceita um cafezinho?”.
“Quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer — Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. — Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu”.
“Quero esquecer de Brasília mas ela não deixa. Que ferida seca. Ouro. Brasília é ouro. Joia. Faiscante”.
“Brasília é uma estrela espatifada. Estou abismada. É linda e nua”.
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PARA LER
- Para não esquecer, Clarice Lispector (Rocco)
- De corpo inteiro, Clarice Lispector (Rocco)
- Visão do esplendor: impressões leves, de Clarice Lispector (Rocco)
Originally published at http://novo.roteirosliterarios.com.br on February 26, 2015.https://clubelulalivroagenciaeccom.blogspot.com/2023/04/blog-post_38.html
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