segunda-feira, 4 de julho de 2022

Memórias de Ana Maria Machado enfatizam a força da literatura 


Ana Maria Machado, autora de Rastros e Riscos.

Fiquei preocupado quando, logo na introdução do recém-lançado "Rastros e Riscos" (Ática), li que Ana Maria Machado não queria ficar lembrando experiências negativas. "Claro que as tenho como todo mundo. Muitas e dolorosas. Algumas são de episódios que machucaram bastante. Mas ao ajuste de contas prefiro o reencontro com os bons momentos", escreve um dos nomes mais importantes da história de nossa literatura, autora de obras como "Menina Bonita do Laço de Fita","Bisa Bia, Bisa Bel" e "Infâmia". 

Poxa, não faltaria certo tempero, alguma pimenta, a um livro de memórias focado essencialmente em passagens positivas? A desconfiança se desfez pouco depois, com uma história vivida no Uruguai. Resumo. Em 1998, professoras de uma escola do interior uruguaio souberam que Ana estaria numa feira de livros em Montevidéu. Então, trabalharam os livros da brasileira em sala de aula e se prepararam para visitar a capital e encontrar Ana. No dia, no entanto, não arrumaram transporte. Para contornar a frustração, mestres e alunos se reuniram, pegaram um ônibus, foram até a cidadezinha ao lado, onde havia um telefone público, e combinaram de ligar para 

"De lá os alunos, em fila, me contavam o que tinham preparado ou faziam perguntas que tinham programado. Eu ia respondendo a cada um, constatando a emoção deles naquele momento tão aguardado. E também me comovi, claro", recorda a autora. Ali já fica claro: os temperos utilizados por Ana nessa obra memorialística são outros. Em "Rastros e Riscos" é o afeto e a crença na literatura que predominam. 

O volume é habitado por uma coleção de bons leitores encontrados pela escritora pelo Brasil, pela Europa, pela África e por outros países da América. Desses encontros surgem histórias saborosas, que retratam as diferentes formas de uma mesma obra ser recebida, mostram a identificação das pessoas com seus personagens e evidenciam o olhar arguto de muitas crianças na compreensão da arte. "Não são necessários complicados tratados teóricos sobre a estética da recepção para termos a revelação de como a arte atinge o espírito humano", constata. 

Há passagens que ajudam a dar a dimensão da grandeza de Ana, vencedora do Hans Christian Andersen, principal prêmio de literatura infantojuvenil do mundo. Numa delas, por exemplo, a autora recorda quando autografou livros para os netos de Gabriel García Márquez a pedido do próprio Gabo. Memórias construídas entre as prateleiras da Malasartes, livraria especializada em literatura infantil fundada pela escritora em 1979, no Rio de Janeiro, também têm o seu espaço em "Rastros e Riscos". 

Ana ainda dedica algumas páginas para construir um panorama do livro no Brasil, mostrando os avanços que tivemos na área, comentando ações públicas bem-sucedidas e nos fazendo lembrar da importância de se construir políticas de Estado para o setor capazes de resistir a trocas de governo. Um passeio por diversos festivais literários espalhados pelo país fecha essas memórias da autora. É uma obra breve, mas que rendem passagens como esta: 

"É fundamental descobrir quem é diverso ou diferente, que um livro nos leva a crescer muito além de nossos limites individuais, que nos oferece a revelação de infinitas possibilidades, a abertura para a rica diversidade da vida, da história e da humanidade como um todo. Uma casa em que todas as paredes são recobertas de espelhos seguramente é redutora de experiências e leva a uma enlouquecedora supressão de horizontes. Empatia e autodescoberta se entrelaçam no vigor imorredouro da literatura, em qualquer circunstância, para qualquer idade"

Quem anda desanimado ou desconfiado da potência da literatura sai revigorado de um livro como "Rastros e Riscos - Minhas Memórias de Leitores". 

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